A Lâmpada do Senhor

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"A alma do homem é a lâmpada do Senhor." (Pv 20.27)

A LIGAÇÃO essencial entre a vida de Deus e a vida do homem é a grande verdade do mundo; e esta é a verdade que Salomão nos apresenta nas palavras notáveis que escolhi para meu texto esta manhã. O quadro que as palavras sugerem é muito simples. Uma vela apagada fica no escu­ro, e alguém tem de acendê-la. Um pedacinho de papel em chamas mantém o fogo a princípio, mas é vago e espasmódico. Chameja e oscila e a qualquer momento pode apagar. Mas a chama vaga, incerta e cintilante toca a vela, a vela pega fogo e imediatamente temos uma chama fixa. Queima ininterrupta, clara e constantemente. A vela dá ao fogo um ponto de manifestação para todo o ambiente que é ilumi­nado por ele. A vela é glorificada pelo fogo, e o fogo é manifestado pela vela. Os dois prestam testemunho de que foram constituídos um para o outro pelo modo no qual satisfazem a vida um do outro. Essa satisfação vem pela maneira na qual a substância inferior presta obe­diência à superior. A vela obedece o fogo. A cera dócil reconhece que a chama sutil é sua mestra, e se entrega ao seu poder; e assim, como todo escravo fiel de um senhor nobre, dá imediatamente à nobreza do seu senhor a chance de se exprimir, e sua própria substância é vestida com uma glória que não lhe é própria. O granito desobediente, se tentamos queimá-lo, não dá ao fogo a chance de mostrar seu brilho, nem reúne esplendor para si. Só arde com resistência tacitur­na, e, à medida que o calor aumenta, racha e quebra, mas não se rende. Porém a vela obedece, e assim neste fogo difuso acha um ponto de expressão permanente e clara.

Não vemos, com tal quadro nítido diante de nós, o que quer dizer quando é dito que um ser é a vela de outro ser? Há na comunidade um homem de caráter grandioso e rico, cuja influência percorre todos os lugares. Você não pode falar com cada homem em toda cidade. mas você obtém, mostrado pelas maneiras próprias daquele homem, o pensamento, o sentimento daquele homem central que ensina toda a comunidade a pensar, a sentir. Até os meninos captam algo do poder dele, e têm algo sobre si que não existiria se ele não morasse na cidade. Que descrição melhor você daria de tudo isso, do que dizer que a vida daquele homem era fogo, e que as vidas de todos os outros, velas que ele acendeu, que deu à natureza rica, quente, viva e fértil que havia nele pontos multiplicados de exibição permanente, de forma que ele iluminou a cidade por eles? Ou, para não olhar tão amplamente, tenho pena de você se no círculo de sua casa não há uma natureza morna e viva que seja seu fogo. Sua natureza-vela fria e escura tocada por esse fogo, queima luminosa e claramente. Para onde quer que você seja levado, talvez em regiões onde essa nature­za não possa ir, você leva o fogo e o monta num lugar novo. Não, o fogo em si pode ter mitigado, a natureza pode ter desaparecido da terra e ido para o céu; e, não obstante, sua vida-vela, que foi acendida nesse fogo ainda mantém o fogo no mundo, como o fogo do raio vive na árvore que atingiu, muito tempo depois de o próprio raio fugaz ter terminado sua vida curta e quente e morrido. Assim o homem no escritório de contabilidade é a vela da mulher que fica em casa, fa­zendo que a influência suave dela seja sentida nos lugares ásperos do comércio, onde os pés dela nunca vão. Assim o homem quef para a cidade, vive como inspiração à honestidade, pureza e caridade, só pode ser a vela em cujas vidas obedientes ainda queima o fogo de outro homem forte e verdadeiro que era seu pai, e que passou da vista dos homens uma vintena de anos atrás. Os homens chamam o pai de morto, mas ele não está mais morto que a tocha apagada que iluminava o farol que está brilhando no monte.

E agora, concernente a toda essa iluminação de vida em vida, duas coisas são evidentes, as mesmas duas que apareceram na histó­ria da vela e sua chama: Primeiramente, tem de haver uma correspon­dência de natureza entre as duas vidas; e em segundo lugar, tem de haver uma obediência sincera da menor para a maior. A natureza que não sente o calor de outra natureza, mesmo que lhe seja mantida próxima; c a natureza que recusa ser mantida onde a chama da outra natureza pode alcançá-la — ambas têm de ficar apagadas, pouco importando quão ardentemente o fogo da vida superior queime.

Penso que estamos prontos para nos voltarmos a Salomão, ler suas palavras novamente e entendê-las. "A alma do homem é a vela do Senhor", declara ele. Deus é o fogo deste mundo, seu princípio vital, uma presença terna e penetrante em todos os lugares. Que coisa da natureza exterior pode nos pintar o pensamento misterioso, sutil. ativo, vivo, produtivo e destrutivo, que sempre tem levantado o cora­ção dos homens e lhes solenizado a face quando dizem a palavra "Deus", conforme esta coisa estranha, tão divina, tão sobrenatural, tão terrível e contudo tão graciosa; tão plena de criatividade, e não obstante tão vivaz e feroz para tirar tudo o que se opõe cm seu caminho — esta maravilha, esta beleza, esta glória e este mistério de fogo? Os homens sempre sentiram a aptidão da figura; c o fogo sem­pre se reuniu, mais perto de todos os elementos terrenos, em volta do trono no qual a concepção que os homens têm da deidade assentou-se. E agora deste fogo a alma do homem é a vela. O que significa isso? Se, pelo fato de o homem ser de natureza correspondente à natureza de Deus, e na medida em que o homem é obediente a Deus, a vida de Deus, que é disseminada ao longo do universo, reúne-se na elocução; e os homens e, sim, todas as outras coisas, se tais seres há capazes de observar nossa humanidade, vêem o que Deus é contem­plando o homem a quem Ele inflamou, então a figura não é clara? Trata-se de um pensamento maravilhoso, mas está bastante nítido.

Aqui está o universo, cheio do fogo difuso da divindade. Os homens o sentem no ar, quando sentem um calor intenso que não desatou em chamas. Este é o significado de grande parte da majes­tade inexplicada e misteriosa da vida, da qual os que estão plena­mente em seu poder estão parcialmente cientes. É a sensação de Deus, sentida mas não vista, como atmosfera carregada de calor que não irrompe em fogo. Agora em meio a este mundo solene e sobre­carregado, levanta-se um homem, puro, semelhante a Deus e per­feitamente obediente a Ele. Num momento, é como se o quarto aquecido tivesse encontrado um ponto sensível e inflamável, onde pudesse acender uma chama. A vaga opressão da presença sentida de Deus torna-se clara e definida. A intermitência da impressão da divindade é afiançada na permanência. O mistério muda seu cará­ter, e é um mistério de luz, não de escuridão. O fogo do Senhor encontrou a vela do Senhor, e queima clara e firmemente, guiando-nos e alegrando-nos em vez de nos desnortear c nos assustar, tão exatamente como um homem que é obediente a Deus começa a captar e manifestar a natureza divina.

Espero que descubramos que esta verdade se aproxima muito de nossas vidas pessoais e distintas; mas, antes que cheguemos a isso, recordemos primeiramente com que dignidade central essa verdade veste a vida do homem no grande mundo. Certas filosofi­as, pertencentes a nosso tempo, depreciariam a importância do homem no mundo e o privariam de sua centralidade. O instinto e o orgulho humanos rebelam-se contra elas, mas ele é confundido por sua aparência enganadora. É realmente verdade, como é notó­rio, que o mundo foi feito para o homem, e que a partir do ho­mem, ficando no centro, todas as coisas além das quais o mundo contém, ganha seu verdadeiro valor e recebe o veredicto do seu destino? Esta era a antiga história que a Bíblia contou. O livro de Gênesis com o jardim do Éden e os animais obedientes esperando até que o homem lhes dissesse como deviam ser chamados, tan­geu firmemente, no começo do hino da história do mundo, a gran­de nota da centralidade do homem. E o jardim do Éden, nesta sua primeira idéia, repete-se em cada cabana das florestas ocidentais ou das selvas meridionais onde um novo Adão e uma nova Eva. um colono solitário e sua esposa, começam novamente a história humana. Lá, mais uma vez, a nota do Gênesis é soada, e o homem afirma sua centralidade. A floresta aguarda para obter a cor da vida do homem. Os animais hesitam com medo ou raiva até que ele os domestique para seu serviço ou os despeça. A terra debaixo dos pés do homem celebra a fertilidade a seu comando e responde a convocação das sementes de grãos ou de flores. O próprio céu sobre sua cabeça o respeita, e o que ele faz na terra ecoa nas mudanças climáticas e na pressa ou lentidão das tempestades. Esta é a grande impressão que toda a vida mais simples do homem sempre está criando, e com a qual as filosofias, que fariam pouco caso da separação e centralidade da vida do homem, sempre têm de lutar. E esta é a impressão que é tomada, fortalecida, esclarecida e retirada de um orgulho insignificante de uma dignidade suprema e uma responsabilidade solene, quando temos tal mensagem como a de Salomão. Ele diz que a verdadeira separação, superioridade e centralidade do homem está na semelhança da natureza de Deus. e na capacidade de obediência espiritual a Ele, em virtude da qual o homem pode ser a declaração e manifestação de Deus para todo o mundo. Contanto que essa verdade permaneça, a centralidade do homem é certa. "A alma do homem é a vela do Senhor'.

Esta é a verdade sobre a qual desejo falar hoje: a revelação perpé­tua de Deus através da vida humana. Você tem de se perguntar pri­meiramente o que é Deus. Você tem de perceber como no próprio âmago da existência divina, conforme você a concebe, acham-se es­tes dois pensamentos — propósito e justiça —; o quanto é absoluta­mente impossível dar a Deus uma personalidade, exceto de acordo com a concretização destas duas qualidades: a inteligência que plane­ja em amor e a justiça que vive em dever. Então se pergunte como poderia existir na terra o conhecimento dessas qualidades, do que são, de que tipo de ser farão em sua combinação perfeita, se não houvesse uma natureza humana na qual eles se expressassem, da qual brilhassem. Só uma pessoa pode expressar uma pessoa verda­deiramente. Um caráter só pode ser ecoado através de outro caráter. Você pode escrever pelo céu inteiro que Deus é justo, mas isto não arderia lá. Seria, na melhor das hipóteses, apenas um pouco de co­nhecimento; nunca um evangelho, ou algo que alegraria o coração dos homens em saber. Isto só ocorre quando a vida humana, capaz de uma justiça como a de Deus, justificada por Deus, brilha com a sua justiça aos olhos dos homens, uma vela do Senhor.

Insinuei há pouco uma coisa que precisamos observar. A expres­são de Deus feita através do homem é puramente uma expressão de qualidade. Não me diz nada acerca das quantidades que compõem sua vida perfeita. Que Deus é justo e o que deve ser justo — essas coisas eu aprendo pela vida justa de homens justos acerca de mim; mas quanto Deus é justo, a que perfeição inconcebível, a que desen­volvimento inesperado de si mesmo, a qualidade majestosa da justiça pode se estender nEle — da qual não posso formar julgamento que valha algo, da justiça que vejo no membro da raça humana. Isto me parece ampliar de imediato o âmbito da verdade que estou declaran­do. Se é a qualidade de Deus que o homem é capaz de expressar, então deve ser a qualidade do gênero humano que é necessária à expressão; a qualidade do gênero humano, mas não uma quantidade específica, nem um grau designativo da grandeza humana. Quem tem em si a qualidade humana, quem tem realmente o espírito do ho­mem, pode ser uma vela do Senhor. I ma medida maior do espírito torna mais luminosa a luz; mas tem de haver uma luz onde quer que o ser humano, em virtude da sua humanidade, torna-se pela obediên­cia luminoso com Deus.

Há homens de gênio espiritual sublime, os líderes de nossa raça. Como eles se salientam na história! Todos os homens sentem, quando na presença desses líderes, que estão diante da luz de Deus! Eles ficam confundidos quando tentam explicar. Não há nada mais instru­tivo e sugestivo que a confusão que os homens sentem quando ten­tam contar o que é inspiração — como os homens ficam inspirados. As linhas que eles traçam pela comunicação ininterrupta entre Deus e o homem sempre ficam instáveis e confusas. Mas em geral, aquele que entra na presença de uma natureza poderosa, cujo poder é de tipo absolutamente espiritual, sente-se seguro de que, de alguma for­ma, ele está entrando na presença de Deus. Contudo seria melancóli­co se somente os grandes homens pudessem nos dar esta convicção. O mundo seria mais obscuro do que é se todo o espírito humano, tão logo ficasse obediente, não se tornasse a vela do Senhor. Uma pessoa pobre, desprovida, sofrida, ferida, se apenas mantém a verdadeira qualidade humana e não fica inumana, e se é obediente a Deus de maneira cega, surda e semi-consciente, torna-se luz. Aqueles que se encontram ainda mais em trevas tornam-se vagamente cientes de Deus através desta pessoa. Uma simples criança, na sua pura humanidade e com a inclinação fácil e instintiva de sua vida para Deus, de quem ela veio — é uma das trivialidades nos lares acerca de quantas vezes a criança pode arder com alguma sugestão da divindade, e lançar luz nos problemas e mistérios cuja dificuldade ela própria nunca sentiu.

Há velas grandes e velas pequenas ardendo em todos os lugares. O mundo é luminoso com elas. Você fechou o livro no qual mantinha comunhão com uma das grandes pessoas de todos os tempos; e en­quanto você permanece na luz que ela espalha em torno de si, seu filho a seu lado lhe diz algo simples e pueril, e uma nova linha de sabedoria iluminada percorre pelos doces e sutis pensamentos que o grande pensador lhe deu, assim como a luz de uma vela pequena envia seu ponteiro especial de brilho através do esplendor penetrante de um mundo iluminado pelo sol. Não é estranho. O fogo é o mes­mo, qualquer que seja a luminária humana que dê sua expressão. Não há vida tão humilde que, se for verdadeira e genuinamente humana e obediente a Deus, não possa disseminar a luz divina. Não há pessoa tão pobre que os maiores e mais sábios de nós possam se dar ao luxo de menosprezá-la. Não sabemos em que momento súbito a vida brilha com a vida de Deus.

E nesta nossa verdade, temos a chave de outro mistério que por vezes nos confunde. O que faremos de um rico em realizações e em aspirações generosas, de boas maneiras, bem-educado, que se ins­truiu para ser luz e ajudar outros, mas que, agora que seu treinamento esta completo, levanta-se no meio dos membros da raça humana com­pletamente na escuridão e desprovido de poder? Há muitos de tais homens. Todos os conhecemos, os quais viram como os homens cres­ceram. Seus irmãos ficam em volta deles esperando deles a luz, mas a luz não vem. Eles mesmos ficam admirados. Eles se formaram para a influencia, mas ninguém os reconhece. Eles se inflamaram para dar luz. mas ninguém brilha de volta uma resposta agradecida. Talvez eles culpem os membros da raça humana que são muito tolos para ver o esplendor que dão. Talvez só desejem saber qual é o problema. e esperam, com uma esperança que nunca morre totalmente no de­sespero, pelo muito demorado reconhecimento c gratidão. No fim, morrem, e os homens que lhes volteiam o sepulcro sentem que a coisa mais triste sobre a morte deles é que o mundo não está perceptivelmente mais escuro do que antes. O que significa? Se deixarmos a verdade da figura de Salomão desempenhar seu papel, o significado da figura familiar não é: Estes homens são velas apagadas; eles são o espírito do homem, elaborado, cultivado, em seu melhor primor, mas no qual falta o último toque de Deus. Tão escuro quanto uma fileira de luminárias prateadas, todas cinzeladas e forjadas com habilidade maravilhosa, todas providas do óleo mais raro, porém intactas pelo fogo, tão escuro neste mundo é uma longínqua fileira de homens cultos, postados ao longo dos corredores de uma era da história, ao redor dos saguões de uma universidade ou nos púlpitos de uma igre­ja imponente, a quem não chegou o fogo da devoção, que ficam em temor e reverência diante de sabedoria não maior que a própria, que são orgulhosos e egoístas, que não sabem o que é obedecer.

Há uma explicação do seu espanto quando você se apega estrei­tamente a um homem a quem o mundo chama brilhante, e descobre que você mesmo não obtém brilho dele. Há uma explicação de você, ó homem perplexo, que nunca pode entender a razão de o mundo não se voltar para você em auxílio. O mundo pobre e cego não pode contar a necessidade que tem, analisar o instinto que possui, nem dizer por que busca um homem e deixa outro; mas por seus olhos cegos, sabe quando o fogo de Deus cai numa vida humana. Este é o significado da prestimosidade estranha que surge no homem quando ele é verdadeiramente convertido. Não se trata de uma verdade nova que ele aprendeu, nem de maravilhas novas que ele pode fazer, trata-se da natureza apagada, que na obediência e submissão absolutas daquela grande hora, foi levantada e iluminada na vida de Deus e agora arde com Ele.

Mas não é a pior coisa na vida para um homem ser destituído de poder ou de influência. Há homens o bastante por quem agradecerí­amos a Deus se não causassem dano, mesmo que não fizessem ne­nhum bem. Não me deterei agora para questionar se tal coisa é pos­sível, como uma vida ficar totalmente sem influência de qualquer tipo, se talvez os homens de quem tenho falado também não perten­çam à classe de que quero falar a seguir. Por mais que seja, estou certo de que você reconhecerá o fato de que há uma multidão de homens cujas candeias não estão apagadas, e contudo não são as velas do Senhor. Uma natureza preenchida ricamente até à borda, um homem de conhecimento, de perspicácia, de habilidade, de pensa-mento, com as mesmas graças do corpo perfeito, e não obstante pro­fano, impuro, mundano e difundindo ceticismo de todo o bem e verdade acerca dele por onde quer que vá — a sua vela não está apagada. Ele brilha tão intensa e vividamente que as luzes mais puras ficam escuras por seu clarão. Mas se é possível para a vela humana, quando tudo está pronto, quando os componentes sutis de uma natu­reza humana estão todos cuidadosamente entrosados; se é possível que, em vez de ser erguido ao céu e inflamado no puro ser daquEle que é eterna e absolutamente bom, ser mergulhado no inferno e consumido nas chamas do terrível enxofre do inferno, então pode­mos entender a visão de um homem que é rico em toda qualidade humana brilhante, amaldiçoando o mundo com a exibição ininterrupta do diabólico em vez do divino em sua vida.

Quando o poder do amor puro aparece como capacidade de lu­xaria brutal; quando a ingenuidade santa com que o homem busca o caráter do membro da raça humana, para que ele o ajude a ser o melhor que pode, é transformado na habilidade profana com a qual o homem ruim estuda sua vítima, a fim de que ele saiba como tornar sua condenação mais completa. Quando o magnetismo quase divino que é dado ao homem para que instile fé e esperança em alguém que nele confia, é usado para respirar dúvida e desespero em toda a subs­tância da alma confiante de um amigo. Quando as faculdades men­tais, que devem embelezar a verdade, são deliberadamente prostituí­das a serviço da mentira. Quando a seriedade é degradada para ser escrava da blasfêmia, e a reputação do escravo é transformada em manto para a vergonha do senhor, em todos estes casos, e quão fre­qüentes são entre nós ninguém deixa de perceber, você tem o espíri­to do homem inflamado de baixo, não de cima. a vela do Senhor ardendo com o fogo do Diabo. Ainda queimará; ainda a inflamabilidade nativa da humanidade se mostrará. Haverá luz; haverá poder; e ho­mens que querem nada mais que luz e poder irão a ela.

É maravilhoso como o mero poder, ou o mero brilho, completa­mente separado do trabalho que o poder está fazendo e da história que o brilho tem a contar, ganhará a confiança e admiração de ho­mens de quem esperaríamos coisas melhores. Um livro ou uma peça brilhantes atrairá multidões, ainda que seu significado seja detestável. Um homem esperto fará um grupo de meninos e homens ficar como pássaros encantados enquanto ele silenciosamente lhes arranca os princípios e os deixa como ignorantes morais. Muitos da comunidade se apressarão como ovelhas tolas para as eleições e votarão em quem eles sabem que c falso e brutal, porque aprenderam a dizer que ele é forte. Tudo isso é efetivamente verdade; e não obstante, enquanto os homens fazem estas coisas loucas e tolas, eles conhecem a diferença entre a iluminação de uma vida humana que é inflamada de cima e da que é inflamada de baixo. Eles reconhecem as chamas puras de um e o clarão lúrido de outro; e por mais que louvem e sigam a inteligência e o poder, como se ser inteligente ou poderoso fosse um fim suficien­te em si mesmo, eles sempre manterão o mais sagrado respeito e confiança por aquela inteligência mais pobre que é inspirada por Deus e que trabalha pela justiça.

Há ainda outro modo, mais sutil e às vezes mais perigoso que estes, no qual o espírito do homem pode falhar em sua função mais completa como vela do Senhor. A candeia pode estar acesa, e o fogo no qual está iluminada seja realmente o fogo de Deus, e contudo pode não ser somente Deus quem brilha no mundo. Posso imaginar uma vela que de algum modo mistura uma peculiaridade de sua pró­pria substância com a luz que dispensa, dando à luz um matiz que não pertencia essencialmente ao fogo no qual foi aceso. Homens que a viram, veriam não só o brilho do fogo. Também veriam o tom e a cor da candeia. E assim, penso, é com o modo no qual Deus é mani­festado através de alguns homens bons. Eles de fato acenderam a vida nEle. É o fogo do Senhor que neles queima. Eles são obedientes, e assim Ele os torna pontos de sua exposição; mas eles não podem se livrar de si mesmos. Estão misturados com o Deus que eles mostram. Eles se mostram como também o mostram. É como quando um espe­lho mistura a própria forma com os reflexos das coisas que são refle­tidas nele, e lhes dá convexidade curiosa porque ele é em si mesmo convexo. Este é o segredo de todo fanatismo piedoso, de todo pre­conceito santo. É a vela pondo a própria cor na chama que tomou emprestado do fogo de Deus. O homem violento faz Deus parecer violento. O homem especulativo faz Deus parecer um sonho bonito. O homem legalista faz Deus parecer uma lei dura e acerada. É daqui que surge toda facção severa e estreita de sectarismo. A estreiteza do presbiteriano ou do metodista, ou do anglicano ou do quacre, cheio de devoção, realmente em chamas com Deus — o que é ele senão uma vela que sempre dá à chama sua cor, e que. por uma disposição que muitos homens têm em valorizar as pequenas coisas da vida mais do que as grandes, torna menor o brilho essencial da chama do que a cor especial que lhe empresta?

Minhas palavras talvez pareçam lançar um pouco de desprezo ou dúvida naquele elemento individual e distinto na religião de todo homem, sobre o qual, pelo contrário, dou o mais alto valor. Todo homem que é cristão tem de viver uma vida cristã que lhe seja pecu­liarmente própria. Toda vela do Senhor tem de expressar sua luz peculiar. Somente a verdadeira individualidade da fé é marcada por estas características que a salvam do fanatismo; primeiramente, não agrega algo à luz universal, mas só lhe tira fortemente algum aspecto que lhe seja especificamente próprio. Em segundo lugar, sempre se preocupa mais com a luz essencial do que com o modo peculiar no qual a expressa. Em terceiro lugar, facilmente mistura com outras expressões especiais da luz universal, em simpatia e reconhecimento sinceros do valor que se acha nelas. Que estas características estejam na religião de todo homem, e então a individualidade da fé é um ganho inestimável. Então as velas diferentes do Senhor brilham em longas fileiras pelos grandes saguões do seu palácio do mundo; e todas juntas, cada uma complementando as demais, iluminam todo o vasto espaço com Ele.

Tentei descrever algumas das dificuldades que assediam a exibi­ção plena no mundo desta grande verdade de Salomão, que "a alma do homem é a vela do Senhor". O homem é egoísta, desobediente e não deixará sua vida queimar. O homem é voluntarioso, apaixonado e inflama a vida com fogo descrente. O homem é estreito, fanático e faz com que a luz de Deus brilhe com a sua própria cor especial. Mas iodos estes são acidentes. Todos estes são distorções da verdadeira idéia do homem. Como sabemos? Eis o Homem perfeito, Jesus Cristo! Que homem Ele é! Quão nobre, formosa e perfeitamente humano! Que mãos, que pés, que olhos, que coração! Quão genuína e incon­fundivelmente homem! Eu levo os homens da minha experiência ou da minha imaginação à presença dEle. e vejam, justamente quando o pior ou melhor deles fica aquém dEle, minha consciência humana me assegura que eles também ficam aquém da melhor idéia do que é ser homem. Aqui está o espírito do homem em sua perfeição. E então? Não é também a vela do Senhor? "Eu sou a luz que vim ao mundo' (Jo 12.46), asseverou Jesus. "Quem me vê a mim vê o Pai'1 (Jo 14.9). "Nele, estava a vida e a vida era a luz dos homens" (Jo 1.4). Assim escreveu o homem de todos os homens que o conheceu melhor. E nEle, onde estão as dificuldades que vimos? Por um momento, onde está a obscuridade do egoísmo? Parece-me coisa maravilhosa que a natureza humana supremamente rica de Jesus nunca, por um mo­mento, tenha se voltado com auto-complacência pela própria riqueza, ou se iludido com o perigo insistente de todas as almas opulentas: o desejo, no mais pleno sentido, de só agradar a si mesmo. Que fasci­nante é esse desejo. Quanto mantém longe da utilidade muitas das naturezas mais abundantes do mundo. Somente para manipular reiteradamente os seus tesouros escondidos, ter, com mesquinhez espiritual, seus pensamentos por pura alegria de pensar e transformar a emoção na atmosfera suave de uma vida de egoísmo cultivado. Nem um momento disso ocorreu em Jesus. Toda a vasta riqueza de sua natureza humana só significava para Ele mais poder para expres­sar Deus aos homens.

E contudo quão pura era sua vida rica. Quanto detestava queimar com qualquer fogo que não o divino. Tal vida abundante, e ainda tal incapacidade absoluta de alguém viver senão a vida mais santa; tal poder de queimar, e ainda tal incapacidade absoluta de ser inflamada por qualquer tocha senão Deus; tal abundância com tal pureza nunca foi vista sobre a terra; e contudo sabemos quando o vemos que não é um monstro, mas é o tipo do que todos os homens devem ser, embo­ra todos os homens, exceto Ele, tenham fracassado em ser.

Havia intensa personalidade nEle sem um momento sequer de fanatismo. Uma vida especial, uma vida que se levanta distinta e auto-definida entre todas as vidas dos homens, e no entanto uma vida tornando o Deus universal o mais universalmente manifesto por sua distinção, apelando a todas as vidas só em proporção à intensidade da individualidade que enchia sua própria vida. Perceba que só pre­ciso pedir que você o veja, e você tem de ver o que é pelo qual nossas luzes fracas estão lutando. Há o verdadeiro homem espiritual que é a vela do Senhor, a luz que brilha em todo homem.

É distintamente uma nova idéia de vida, nova aos padrões de todo o nosso viver usual, o qual esta verdade revela. Todos os nossos apelos ordinários aos homens para que estejam de pé e produzam e se façam luzes brilhantes, fenecem e tornam-se insignificantes diante desta mensagem sublime que se mostra nas palavras de Salomão e na vida de Jesus. O que diz esta mensagem sublime? "Você é uma parte de Deus! Você não tem lugar ou significado no mundo senão em relação a Ele. A relação plena só pode ser percebida pela obediência. Seja obediente a Ele, e você brilhará por sua luz e não pela própria. Então você não será escuro, porque Ele o inflamará. Então você será tão incapaz de queimar com falsa paixão quanto estará pronto para responder com a verdadeira. Então o Diabo pode segurar sua tocha para você, como ele a segurou para o coração de Jesus no deserto, e seu coração será igualmente não inflamável quanto o dEle. Mas assim que Deus o tocar, você arderá com uma luz tão verdadeiramente sua que você reverenciará sua própria vida misteriosa, e contudo será impossível esse orgulho tão verdadeiramente seu". Que filosofia de vida humana. "Não ser nada, nada!", clama o cantor místico em seu hino de reavivamento, desejando-se perder em Deus. "Não, não: Ser algo, algo", protesta o não místico, ansiando por trabalho, ardente por vida e caráter pessoal. Onde está a reunião dos dois? Como a submissão se encontrará com a sublime auto-estima, sem a qual ne­nhum homem pode justificar seu viver e honrar-se em sua humanida­de? Onde elas se reúnem nesta verdade? O homem tem de ser algo para que ele não seja nada. O algo que ele tem de ser tem de consistir em aptidão simples para expressar a vida divina, que é o único poder original no universo. E então o homem não tem de ser nada para que seja algo. Ele tem de se submeter em obediência a Deus para que assim Deus o use de algum modo, no qual sua natureza especial só seja usada para iluminar e ajudar o mundo. Diga-me, os dois brados não se juntam na única aspiração do homem cristão em encontrar a vida perdendo-a em Deus, para ser ele mesmo sendo não sua vida. mas a de Cristo?

Em certas terras, para certas cerimônias santas, eles preparam as velas com cuidado muito meticuloso. As próprias abelhas que desti­lam a cera são sagradas. Elas vagueiam em jardins plantados com flores doces só para uso delas. A cera é juntada por mãos consagra­das; e a moldagem das velas é tarefa santa, executada em lugares santos, ao som de hinos e na atmosfera de orações. Tudo isso é feito porque as velas serão queimadas nas cerimônias mais sublimes em dias muito sagrados. Com que cuidado deve ser feito o homem cujo espírito c a vela do Senhor! É o espírito dele que Deus tem de acen­der com o próprio Espírito. Portanto, o espírito tem de ser parte pre­ciosa do homem. O corpo só deve ser estimado para proteção e educação que a alma obtém dele. E o poder pelo qual seu espírito se tornará cm vela é a obediência. Então, a obediência deve ser o empe­nho e desejo da sua vida; a obediência, não penosa e forçada, mas pronta, amável e espontânea; a obediência do filho ao pai, da vela à chama; a execução do dever não meramente para que o dever seja feito, mas para que a alma ao fazê-lo se torne capaz de receber e expressar Deus; suportar a dor não meramente porque a dor deva ser suportada, mas para que o ato de suportar torne a alma capaz de arder com o fogo divino que o encontrou no forno; o arrependimento do pecado e a aceitação do perdào, não meramente para que a alma seja salva do fogo do inferno, mas para que seja tocada com o fogo do céu e brilhe com o amor de Deus como as estrelas, para sempre. Acima de todos os quadros da vida — do que significa, do que podemos entender — destaca-se este quadro da alma ou do espírito humano que queima com a luz do Deus a quem ele obedece e o mostra a outros homens. Meus jovens amigos, os velhos lhes dirão que os mais inferiores quadros da vida e seus propósitos mostram-se ilusórios e enganosos. Mas este quadro nunca engana a alma que tenta percebê-lo. O homem cuja vida é a busca por tal obediência, quando afinal sua tarefa terrena tiver sido concluída, olhará adiante das fronteiras desta vida para a outra e dirá humildemente, assim que a história de sua vida terminar e sua oração pela vida por vir, as palavras que Jesus disse: "Eu glorifiquei-te na terra, tendo consumado a obra que me deste a fazer. E, agora, glorifica-me tu, ó Pai, junto de ti mesmo, com aquela glória que tinha contigo antes que o mundo existisse" (Jo 17.4,5).

 

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